O Brasil atingiu uma importante marca ao reduzir a pobreza e a extrema pobreza ao menor nível da história, mas as 9 milhões de pessoas que ainda estão na linha de miséria, com renda de até R$ 200, mesmo com a expansão do Bolsa Família, cujo orçamento é de R$ 170 bilhões por ano, mostram que é preciso mais. Essa é a avaliação de Pedro Fernando Nery, economista e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em entrevista à EXAME.
“Como aceitamos uma taxa de extrema pobreza de 4% se o Bolsa Família tem R$ 170 bilhões de orçamento? Se pagamos benefícios mínimos de R$ 600, como temos 9 milhões vivendo com menos de R$ 200 por mês? Tem que cobrir mais gente”, diz.
Autor do livro ‘Extremos – Um Mapa para Entender as Desigualdades no Brasil‘, ele avalia que é preciso redesenhar as medidas para atender quem mais precisa e garantir o reingresso automático para quem ficar desempregado para estimular o mercado formal de trabalho.
“Ajustando o desenho do programa, por exemplo, acabando com as filas ou garantindo reingresso automático para quem arrumou um emprego com carteira assinada, perdeu e ficou pobre de novo”, afirma. “Hoje, os beneficiários têm o medo de perder o emprego e ficar sem nada depois, porque a fila demora muitos meses. Por isso, preferem uma vaga informal, que não carrega tanto esse risco de exclusão do programa.”
O professor do IDP afirma que “o debate da porta de saída é menos importante do que o debate sobre o aumento da cobertura” e diz que os programas de transferência de renda são aliados, mas a pobreza somente vai cair mais com um mercado de trabalho “mais forte” e a economia em crescimento.
“A pobreza está na mínima histórica, mas ainda é bastante alta. Cinco vezes a taxa do Chile, quatro vezes o percentual do Uruguai. Transferências de renda ajudam muito na extrema pobreza, mas para a pobreza cair mais precisamos de um mercado de trabalho mais forte e a economia tem que crescer”, afirma.
Nery destacou ainda como a proposta de isenção de imposto de renda pode favorecer a redução da desigualdade do país, e avaliou como o pacote de corte de gastos poderia atacar privilégios e a importância do cuidado com as crianças para não “contratar o aumento da desigualdade lá na frente”.
Veja a entrevista completa com Pedro Nery
O estudo do IBGE destaca a redução do número de pessoas em situação de pobreza, mas o índice de Gini permaneceu estável. O que isso indica sobre a distribuição de renda no Brasil e quais são os desafios para uma redução mais significativa da desigualdade?
Sugere que a desigualdade de consumo pode estar caindo mais do que a desigualdade de renda. A redução da pobreza é em si uma queda na desigualdade, desigualdade de acesso a produtos básicos. Por exemplo, comida. O levantamento do IBGE mostra, por exemplo, que 90% dos domicílios pobres têm acesso à internet. Em 2016, era 70%. Uma grande convergência, quer dizer, uma queda na desigualdade de acesso à Internet – sem que a desigualdade de renda tenha mudado muito. Para saber mais sobre a desigualdade de renda propriamente dita, temos que esperar dados do imposto de renda. É sabido que a PNAD, base das pesquisas do IBGE, subestima a renda no topo. Pessoas mais ricas tendem a relatar uma renda menor do que realmente recebem, seja por vergonha, por medo ou até por desconhecimento.
Considerando a importância dos programas sociais, você acredita que as políticas atuais são suficientes para combater as desigualdades estruturais no Brasil? Muito se fala sobre a falta de uma porta de saída para o Bolsa Família. Como você vê essa questão?
O debate da porta de saída é menos importante do que o debate sobre o aumento da cobertura. Ainda temos muita gente fora do Bolsa Família. Como aceitamos uma taxa de extrema pobreza de 4% se o Bolsa Família tem R$ 170 bilhões de orçamento? Se paga benefícios mínimos de 600 reais, como temos 9 milhões vivendo com menos de 200 por mês? Tem que cobrir mais gente. A porta de saída pode melhorar, é verdade, mas ajustando o desenho do programa, por exemplo, acabando com as filas ou garantindo reingresso automático para quem arrumou um emprego com carteira assinada, perdeu e ficou pobre de novo. Hoje, os beneficiários têm o medo de perder o emprego e ficar sem nada depois, porque a fila demora muitos meses. Por isso, preferem uma vaga informal, que não carrega tanto esse risco de exclusão do programa. No mais, em que pese casos anedóticos sobre o programa, a verdade é que muitos beneficiários do Bolsa Família trabalham, e 80% das crianças no programa tendem a não precisar dele quando adultas.
Como aceitamos uma taxa de extrema pobreza de 4% se o Bolsa Família tem R$ 170 bilhões de orçamento? Se paga benefícios mínimos de 600 reais, como temos 9 milhões vivendo com menos de 200 por mês?
A isenção de imposto de renda para quem recebe até R$ 5 mil e tributação maior dos super-ricos são medidas que podem ajudar a melhorar o cenário de injustiça tributária e, consequentemente, diminuir a desigualdade?
Essas medidas ajudam, principalmente, a desconcentrar no topo. O 1% mais rico no Brasil concentra algo como 25% da renda. Segundo a ONU, é o 5º pior índice do mundo, ou pelo menos foi na década passada. Só ganhariam de nós Catar, Malauí, Moçambique e República Centro-Africana. Mas como quem ganha R$ 5 mil não é pobre para o padrão brasileiro, a redução na desigualdade não vai ser tão grande quanto seria se focássemos em desonerar a carga de quem nem renda para pagar IR tem. Poderíamos, por exemplo, isentar o primeiro salário mínimo da pesada tributação que tem, em relação à contribuição previdenciária e outros tributos sobre a folha.
Outra discussão no Brasil é o tamanho dos benefícios sociais e a responsabilidade fiscal. Como o governo pode equacionar a necessidade da população pobre de uma renda e a demanda de conter o avanço da dívida pública?
A maioria do gasto público não se converte em renda para as famílias mais pobres. Exemplos podem ser vistos nos super salários do Judiciário, nos privilégios da previdência militar, na folha do setor público e até em benefícios que acabam sendo direcionados a grupos intermediários na distribuição de renda, como o abono salarial e o seguro-desemprego. Gostaria que o pacote do governo fosse mais ousado nesse sentido. Se fazer cortes hoje parece politicamente difícil, a gente poderia contratar eles para o futuro. A reforma tributária tem transições que vão de 10 anos, de 50 anos. Poderíamos fazer o mesmo na reforma do gasto. Para a trajetória da dívida isso importa, para os juros importa, sem ter tanto custo político hoje. Por que não acabar privilégios dos militares para quem ainda não entrou nas carreiras? Ou prever a integração de Seguro Desemprego e FGTS em 2030? Tornar o abono despesa discricionária daqui a alguns anos?
Se fazer cortes hoje parece politicamente difícil, a gente poderia contratar eles para o futuro. A reforma tributária tem transições que vão de 10 anos, de 50 anos. Poderíamos fazer o mesmo na reforma do gasto.
Com a redução de pessoas na extrema pobreza, o Brasil conseguiu atingir um importante marco. Porém, o que podemos esperar no longo prazo em termos de mobilidade social para as populações que ainda vivem abaixo da linha da pobreza?
A pobreza está na mínima histórica, mas ainda é bastante alta. Cinco vezes a taxa do Chile, quatro vezes o percentual do Uruguai. Transferências de renda ajudam muito na extrema pobreza, mas para a pobreza cair mais precisamos de um mercado de trabalho mais forte e a economia tem que crescer.
No levantamento, vemos que a pobreza atinge mais as zonas rurais. Quais são as especificidades dessas regiões que dificultam o avanço na erradicação da pobreza e como as políticas públicas poderiam ser adaptadas a essa realidade?
Na história do desenvolvimento econômico, a redução da pobreza sempre esteve fortemente ligada à migração para as cidades. As transferências de renda ajudam a aliviar a situação no campo, mas entendo que o processo de migração urbana não deve ser considerado exaurido. Ainda cabe muita gente em nossas cidades. Cidades são importantes para os pobres porque fornecem empregos e serviços que não estão disponíveis no meio rural. Não podemos glamourizar a vida no campo.
A pesquisa aponta que as mulheres negras e pardas representam uma parte desproporcional dos jovens fora da escola e do mercado de trabalho. Quais ações podem ser adotadas para garantir maior inclusão dessa população, especialmente no contexto educacional e profissional?
Uma pesquisa do Banco Mundial indica que o principal obstáculo é o fato de serem cuidadoras. São nem-nem porque estão cuidando de alguém. Nesse sentido, a expansão de rede de creches é fundamental. É positiva não só para a criança, que tem melhor acesso à nutrição e a estímulos, mas pra geração de renda no domicílio. Vamos torcer para que o governo dê um gás na política nacional para a primeira infância, uma promessa que está andando devagar.
O estudo revela que o rendimento médio por hora dos trabalhadores negros é significativamente inferior ao dos brancos. Como isso se reflete nas oportunidades de crescimento e quais políticas podem ser implementadas para inverter essa tendência?
Me preocupa mais a exclusão do mercado de trabalho. Desemprego e taxa de participação são bem menores para os brancos. Diminuir as barreiras para o mercado de trabalho formal seria uma boa ideia. Algo como contratos mais simples, com menos impostos, mais flexíveis, especialmente para os jovens. Isso seria ainda mais importante para os jovens negros, que enfrentam muros altos para o mercado de trabalho formal.
Diminuir as barreiras para o mercado de trabalho formal seria uma boa ideia. Algo como contratos mais simples, com menos impostos, mais flexíveis, especialmente para os jovens. Isso seria ainda mais importante para os jovens negros
O levantamento indica que 42,7% das crianças e adolescentes vivem em domicílios com benefícios de programas sociais. Qual é o impacto disso na formação das futuras gerações e o que falta para garantir uma educação de qualidade para todos?
É muito ruim. Estamos contratando desigualdade lá na frente. Porque nossa trajetória no mercado de trabalho está muito relacionada com o cuidado que recebemos na infância, quando o cérebro se forma. Se o principal insumo da economia são os cérebros, estamos cuidando mal deles com 45% das crianças na pobreza. É difícil que as habilidades cognitivas e socioemocionais sejam desenvolvidas se o cérebro da criança está lutando contra o estresse tóxico, se o seu corpo batalha por alimentação, se está combatendo vírus e outros invasores decorrentes de moradia ruim, saneamento precário.
Em relação à redução da pobreza, o estudo também menciona o recuo significativo entre jovens de 15 a 29 anos fora da escola e do trabalho…
Ótima notícia. Mas ainda temos metade dos jovens adultos negros sem concluir o ensino médio. É importante torcer para que o ensino integral e os programas de permanência no ensino médio sejam bem-sucedidos, como o Pé de Meia. De fato, parece haver desinteresse crescente pela educação, que precisa ser combatido urgentemente.
Quais são as implicações desse dado para o futuro do país, especialmente em relação à empregabilidade e à inclusão no mercado de trabalho?
É péssimo. Porque o momento de entrada no mercado de trabalho afeta o restante da trajetória. É um tempo que não volta. Deixa cicatrizes ou até sequelas. O termo que os economistas usam é histerese. Sabemos há algum tempo que jovens que entram no mercado de trabalho durante uma recessão não vão ter a mesma remuneração lá na frente do que jovens com exatamente o mesmo perfil que tiveram sorte de ingressar em um período normal. Aumentar as taxas de conclusão no ensino médio e permitir um ingresso suave no mercado de trabalho é fundamental.
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