Crise entre Israel e Líbano pode crescer e envolver Rússia e China, diz professor

O avanço do conflito entre Israel e Hezbollah, que deixou centenas de mortes nos últimos dias, pode virar uma crise regional, envolvendo outros países da região, como Turquia e Síria. Se a coisa piorar muito, a situação pode evoluir para um conflito capaz de envolver as grandes potências, como Estados Unidos, Rússia e China, avalia Roberto Ueber, professor de relações internacionais da ESPM.

“Os Estados Unidos apelam para Israel [conter a guerra] porque sabem que uma escalada do conflito obrigatoriamente provocará uma participação dos Estados Unidos, e também da Rússia e da China. Uma coisa é falar da Guerra da Síria, há dez anos atrás, em que os três se envolveram em ações dentro do território sírio, mas não chegaram a entrar em conflito direto”, diz Ueber.

“Há uma grande interrogação sobre qual seria a participação de Rússia e China em um eventual conflito escalado para toda a região do Oriente Médio. Uma possibilidade seria ter uma espécie de ‘proxy war’, com cada um apoiando um lado, e isso poderia escalar para todo o sistema internacional”, prossegue. 

Ueber é doutor em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e fez pós-doutorado no King’s College, em Londres. A seguir, veja outros pontos da conversa.

Por que Israel resolveu começar uma ofensiva contra o Hezbollah neste momento?

A primeira razão pode ser uma questão simbólica. Daqui a uma semana e meia, fará um ano dos ataques do Hamas a Israel. Acho que é uma tentativa de demonstração de força de Israel, para evitar qualquer outra incursão, seja do Hamas ou do Hezbollah.

A segunda explicação possível é uma preocupação de Israel com uma escalada do conflito na região. Acho que Israel está percebendo algumas movimentações do Hezbollah, principalmente uma aproximação do Irã, e fez o cálculo estratégico de ataque ao Hezbollah, e por conseguinte ao próprio Líbano, para evitar que o Irã tenha um envolvimento direto, uma incursão direta contra Israel, que me parece ser talvez o argumento mais válido neste momento. Tenho a convicção de que Israel está prospectando um ataque do Irã, seja direto ou por meio do Hezbollah.  

Até onde o conflito entre Israel e Hezbollah pode escalar?

Vejo a situação com muita preocupação e cautela. Tudo indica que Israel fará uma invasão por terra ao Líbano, e isso provocará uma resposta regional, envolvendo Síria, e provavelmente Turquia e Arábia Saudita. Ou seja, traz outros atores para o conflito que era praticamente entre Israel, Hezbollah e Hamas, e serão atores estatais. 

Netanyahu está ignorando os apelos da comunidade internacional para não invadir o Líbano.  Ele sabe que estamos perto das eleições nos Estados Unidos. A Europa também não quer um envolvimento direto e não vai intervir. Então ele faz este cálculo pensando que Israel pode invadir o Líbano e não ter nenhum tipo de repercussão, porque isso aconteceu na Faixa de Gaza. Teve muitas falas condenatórias, mas nada aconteceu efetivamente contra Israel. 

Uma escalada do conflito pode trazer o envolvimento de potências regionais, mas sem envolvimento, em um primeiro momento, de atores como os Estados Unidos, os países europeus, a China, Rússia e outras potências.

Como poderia ocorrer este envolvimento de potências regionais?

Uma parte muito interessada nisso é a Arábia Saudita, que é adversária do Irã, do Hamas, do Hezbollah, e estava construindo um acordo com Israel antes do início da guerra. Caso haja uma escalada desta guerra, não me surpreenderia se existissse uma cooperação entre Israel e Arábia Saudita. Qual o temor da Arábia? Que uma escalada da guerra leve os houthis do sul do Iêmen a invadir a Arábia Saudita e atacarem instalações de produção de petróleo, que é a commodity básica saudita. E que o território saudita sirva de refúgio para terroristas houtis ou Hezbollah.

A Arábia poderia auxiliar Israel em um momento que o sistema internacional não dá este auxílio. Primeiro porque há eleições nos EUA e segundo porque há incômodo com as ações de Israel matando civis na faixa de Gaza e agora também no Líbano. Há também um lobby libanês forte nos Estados Unidos. 

E para terminar, há a participação da Turquia. Ela está muito cansada das ações de Netanyahu. Eles tinham um bom relacionamento com Israel, mas isso vai se perdendo conforme Israel vai desobedecendo o direito internacional, ao não permitir o envio de ajuda humanitária da Turquia para refugiados palestinos e não atende os apelos por uma cessar-fogo. 

Como vê a atuação dos Estados Unidos e das outras grandes potências? O que elas poderiam fazer para ajudar a conter o conflito?

O governo Biden está dando ajuda para manter uma boa relação e porque é um ano eleitoral, para não ser acusado de negligente ou inerte com Israel. Isso poderia afetar parte do eleitorado pró-Israel e atrapalhar a campanha de Kamala Harris. Com certeza, Trump faria o mesmo se fosse presidente. 

Os Estados Unidos apelam para Israel [conter a guerra] porque sabem que uma escalada do conflito obrigatoriamente provocará uma participação dos Estados Unidos, e também da Rússia e da China. Uma coisa é falar de Guerra da Síria, há dez anos atrás, em que os três, EUA, Rússia e China. se envolveram em ações dentro do território sírio, mas não chegaram a entrar em conflito direto. Rússia e China muitas vezes estavam do mesmo lado. 

Agora, neste momento, há uma grande interrogação sobre qual seria a participação de Rússia e China em um eventual conflito escalado para toda a região do Oriente Médio. Uma possibilidade seria ter uma espécie de ‘proxy war’, com cada um apoiando um lado, e isso escalar para todo o sistema internacional. 

Há maneiras de conter a violência e encerrar o conflito atual? Israel tem dito que pretende fazer uma operação pontual para acabar com o Hezbollah. Acha que a coisa pode parar por aí?

Eu não enxergo um cessar-fogo antes de novembro, quando houver as eleições nos Estados Unidos. Israel usou a mesma narrativa quando entrou na Faixa de Gaza e a gente está com quase um ano de guerra. Não vejo um cessar-fogo enquanto não se tiver uma diretriz clara do que [Israel] espera desse conflito, e enquanto não houver uma definição eleitoral nos EUA.

Se ganha Kamala Harris, há espaço para Joe Biden trazer uma proposta de cessar-fogo direto. Se ganhar Trump, Biden terá pouca legitimidade para propor isso tendo poucos meses de mandato pela frente. Vejo um cenário interdependente, que também envolve a Guerra da Ucrânia e se a Rússia estaria disposta a participar de uma negociação, porque ela faz parte do Conselho de Segurança. A Rússia tem uma boa relação com o Irã, tinha uma boa relação com Israel e este é outro ponto de interrogação. Quem Putin apoiaria? Se ela é chamada a participar, ela teria de assumir uma posição.

Israel promete acabar com o Hezbollah. Isso seria possível?

Israel pode conseguir reduzir o poder de combate e o poder político do Hezbollah. No entanto, é muito difícil extinguir qualquer organização terrorista que tem uma veia política, como o Talibã ou o Estado Islâmico. Sempre existirão células. Foi o que aconteceu com a Al Qaeda nos anos 1990. Ela foi praticamente dizimada, mas se refugiou no Afeganistão e ganhou proteção do Talibã. O próprio Talibã foi quase destruído, mas conseguiu retomar ao poder em 2021. Células de organizações como Hezbollah e Hamas poderão ter proteção de algum outro país, como o Irã. 

Como o Brasil deveria se posicionar em relação ao conflito?

Precisa ser o mais pragmático possível. O Brasil tem uma grande comunidade de origem árabe e uma grande comunidade judaica, que vivem harmoniosamente bem. Um posicionamento mais pró-Líbano ou pró-Israel seria um ingrediente para a polarização política dentro do país, algo desnecessário. Há também a questão econômica e comercial. Temos muitos países árabes como clientes, e uma boa relação comercial com Israel, apesar das relações políticas estremecidas nos últimos anos.  O pragmatismo brasileiro envolve condenar a violação da soberania territorial, a violação dos Direitos Humanos, o próprio terrorismo e se manter aberto para tentar mediar uma eventual negociação. O Brasil tem 200 anos de posição pragmática nas relações internacionais. 


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