Há algumas semanas, o Sistema B anunciou sua nova liderança no Brasil, chamando a atenção por adotar, a partir de então, um modelo tríplice, em que duas executivas e um executivo passaram a comandar o movimento global que identifica empresas que utilizam seu poder de mercado para solucionar algum tema social e ambiental. Porém, não obstante ao fato de ser ainda pouco comum o formato de co-liderança, quase inédito mesmo foi escolher, como uma dos três CEOs, Jéssica Silva, contratada com 20 semanas de gestação.
No meio de um longo processo seletivo, como costuma ser a concorrência a uma posição de alta hierarquia, a executiva descobriu a gravidez não planejada, embora muito desejada após um histórico de perdas gestacionais. Já havia completado três meses, quando foi comunicada de que havia sido escolhida e, também, que o Sistema B havia repensado a cadeira, dividindo a liderança em três. Ao abrir a novidade na conversa derradeira com Tarcila Ursini, co-presidente do Conselho da organização, ouviu com surpresa e emoção: “você e seu bebê são muito bem-vindos”.
“Foi muito profundo ter uma presidente de Conselho com uma trajetória tão admirável, defendendo minha capacidade técnica para me convencer do quanto eu poderia agregar e, com a mesma convicção, me acolhendo quando compartilhei uma questão pessoal. Me senti respeitada e validada”, comenta a diretora. Contratada pelo Sistema B, Jéssica, que é natural de Vitória da Conquista, na Bahia, tornou-se ainda uma das 0,4% das mulheres negras que chegam ao C-Level. Um número inexistente na alta liderança das 423 empresas listadas na B3, conforme a pesquisa Mulheres Negras Rumo à Liderança, publicada pela executiva Dilma Campos.
Acelerando contra as estatísticas
A maternidade ainda é um dos principais motores que empurram milhões de mulheres para fora do mercado de trabalho. Em junho deste ano, o Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made), ligado à Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP, apontou que 11,2 milhões de mulheres ficaram fora da força de trabalho porque tinham que cuidar de crianças, de pessoas com deficiência ou realizar afazeres domésticos. Destas, 6,8 milhões são negras e 4,3 milhões são brancas, o que reflete o cenário de desigualdade no Brasil.
Ser contratada grávida e para o C-Level de uma grande organização não foram as únicas barreiras que Jéssica Silva ultrapassou. Como muitas mulheres negras, começou a trabalhar cedo, aos 14 anos. Por toda a vida estudou em escola pública e faz parte da primeira geração a cursar ensino superior em sua família, graças ao Prouni.
“Para fazer cursinho pré-vestibular, precisei batalhar por bolsa de estudos e deixar o trabalho. Foi a primeira quebra de paradigmas na minha família, pois até então ninguém havia parado de trabalhar para estudar”, lembra. A aprovação em uma faculdade conceituada de São Paulo veio com incredulidade por parte de Jéssica e muita festa para a família. “Quando cheguei em casa, meu pai estava montando uma caravana para celebrar na vila em que morávamos”.
A primeira grande oportunidade no mercado corporativo foi vista com desconfiança. Incentivada por uma professora baiana e mulher negra como ela, resolveu tentar e se tornou, assim, trainee da PWC, onde fez carreira e começou a se interessar por ESG. Depois de alguns anos, entendeu que o ciclo havia se encerrado e precisou lidar com o conflito de abrir mão da estabilidade para se arriscar e tentar mais.
Razões para celebrar, muito para lutar
“O acesso à educação foi uma faísca para mim. E trabalhar naquela estrutura me permitiu também o acesso à saúde privada, a viagens, a muitos outros mundos que foram se abrindo. Assim como ampliou a consciência do que eu precisava para ascender”, explica Jéssica. Era hora de estudar inglês.
Pediu demissão e, com contrapartida, recebeu a proposta de retornar para a companhia depois de estudar por seis meses no Canadá. Na volta, readmitida, foi promovida e, pela primeira vez, notou o peso da maternidade na vida das colegas que já eram mães: “Enquanto eu ganhava oportunidades, a carreira delas estava congelada”.
As muitas inquietações que começou a colecionar no âmbito profissional e outras vivências como o trabalho em um campo de refugiados no Canadá aliadas à experiência com governança na PWC levaram Jéssica a aceitar uma nova posição, agora na Vox Capital, onde trabalharia com um tema pelo qual começava a se encantar, investimentos de impacto.
“A nova perspectiva que a Vox abriu me fez questionar o porquê de interseccionalidades de raça e gênero serem objetos de estudo, mas não estarem no centro das soluções”, reflete. Cinco anos mais tarde, decidiu empreender e cofundou a Black Win, movimento de mulheres negras no mercado de investimentos de capital de risco.
Além de C-Level no Sistema B, Jéssica é também conselheira do Comitê ESG do Grupo Fleury e conselheira deliberativa do Pacto da Promoção da Equidade Racial. “Conto a minha história hoje, não para falar de exceção, mas para reafirmar a importância do acesso. Quando existe a oportunidade, a gente consegue agarrar ela”, analisa Jéssica.
Depois dela, outros dois primos e o irmão entraram em faculdades como bolsistas. “E muito mais do que acesso, precisamos falar de permanência. Quando olho para trás e vejo o tanto de chão batido que caminhei, sei que tenho razões para celebrar. Mas ainda há muita luta também”.
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